terça-feira, 29 de março de 2011

Há pedras com voz em Sagres...

Neste último domingo (27 de Março - Dia Mundial do Teatro) eu, a Sónia Pereira e a Lúcia Guerreiro estivemos na Fortaleza de Sagres para dinamizar o arranque do ciclo "Na senda das pedras falantes", o qual vai estender-se até Junho deste ano.
Repositório singular de simbolismos, memórias e histórias, Sagres parece estar à beira do mundo, num lugar mágico de finisterra que nos convida para o impulso da partida e para a (re)ligação a uma paisagem simultaneamente arrebatadora(/determinada) e apaziguadora(/reflexiva) que nos lava de desencontro e poeira, como diria Sophia de Mello Breyner Andresen.
Os ventos plenos de liberdade e rebeldemente incertos na ocorrência e intensidade, os desenhos de luz (que "cai a direito", como também escreveu a eterna Sophia) e sombra, a fecunda interpenetração de sons e cores, a "paternalidade" de um farol vigilante e esperançoso, e a verticalidade monumental e agrestemente avassaladora das falésias aliada a uma imensidão atapetada de azul convocam-nos para a festa múltipla dos sentidos e acordam-nos para o "espantoso esplendor do mundo" (Sophia novamente) e, assim, para uma viagem como que renovadamente iniciática em busca de "uma relação [mais] justa com a pedra" (da "Arte Poética II" de Sophia).
Porventura, em poucos lugares do Algarve se respira o temor e consciência da fragilidade e vulnerabilidade humanas face aos desígnios superiores e imprevistos da natureza-mãe, e, ao mesmo tempo, a envolvência encantatória de uma paisagem que nos transporta aos abismos mais insondáveis de nós mesmos, do mundo que nos rodeia e do nosso próprio imaginário colectivo.

Espalhámos poesia, música e massagem, num diálogo que se pretende(u) cúmplice entre quatro mãos (da terapeuta e do músico) e uma voz (da declamadora), criando um ambiente intimista e relaxante a que não faltaram o incenso, as velas, os óleos e outros ingredientes...
Revisitámos autores como Nuno Júdice, David Mourão-Ferreira, Al Berto, Álvaro Magalhães, Jorge Sousa Braga, Ruy Belo, Alberto Caeiro, entre outros, e usámos o acordeão, a caixa de música e outros pequenos grandes instrumentos enquadradores e sensorialmente "planantes", distribuindo depois aos participantes marcadores de livro com alguns dos textos lidos durante as massagens, visto que o incentivo à leitura e descoberta de autores é um dos nossos desideratos fundamentais neste ciclo.

Destacamos um episódio curioso porque ilustrativo: a nível da leitura, optámos por escolher apenas textos escritos em português. Acontece que conhecemos um casal de canadianos que prontamente participou no ciclo e que não entendia a língua de Camões. Depois da massagem, um deles referiu que o último texto que lhe fora lido o tinha feito sentir como se estivesse numa "neverland" (terra do nunca, espaço imaginário e longínquo...). Na realidade, o poema que a Sónia lhe sussurrou ao ouvido (o qual enquadrei musicalmente com o tema "Final" de Rodrigo Leão) chama-se precisamente "A Terra do Nunca", do poeta algarvio Nuno Júdice.
De facto, a poesia e a sua transposição para uma existência oral detêm traços e potencialidades que vão muito para lá de uma mera compreensão do significado das palavras. Há uma preciosa musicalidade e uma singular dimensão/jogo de som(ns) e silêncio(s) que, aliadas à respiração, dicção, entoação e ritmo/cadência da voz que lhe dá corpo audível, impregnam o texto poético e o dotam de uma legibilidade sinestésica que vai tecendo a imaginação, como mais uma vez pudemos confirmar.
Aqui fica o texto em causa, bebido no livro As Coisas Mais Simples, publicado em 2006.

A Terra do Nunca

Se eu fosse para a terra do nunca,
teria tudo o que quisesse numa cama de nada:

os sonhos que ninguém teve quando
o sol se punha de manhã;

a rapariga que cantava num canteiro
de flores vivas;

a água que sabia a vinho na boca
de todos os bêbedos.

Iria de bicicleta sem ter de pedalar,
numa estrada de nuvens.

E quando chegasse ao céu, pisaria
as estrelas caídas num chão de nebulosas.

A terra do nunca é onde nunca
chegaria se eu fosse para a terra do nunca.

E é por isso que a apanho do chão,
e a meto em sacos de terra do nunca.

Um dia, quando alguém me pedir a terra do nunca,
despejarei todos os sacos à sua porta.

E a rapariga que cantava sairá da terra
com um canteiro de flores vivas.

E os bêbedos encherão os copos
com a água que sabia a vinho.

Na terra do nunca, com o sol a pôr-se
quando nasce o dia.

Uma nota final: foi muito agradável o acolhimento, atenção e carinho que tivemos da parte dos funcionários da Fortaleza, alguns dos quais participaram entusiasticamente nas sessões que fizemos. O nosso muito obrigado a todos, em especial à Conceição, ao Luciano, ao João e à Telma (queremos rever-vos), e também, pela presença fiel e apoio constante, à Dália Paulo (e à pequena Constança). 

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